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Delegado de polícia pode acessar dados sem autorização judicial

 

 

Delegado de polícia pode acessar dados sem autorização judicial

 

 

 

Como se sabe,[1] nem toda restrição de direitos fundamentais depende de prévia ordem judicial. Em algumas situações, a Constituição não deixou opções: assiste ao Judiciário não apenas o direito de proferir a última palavra, mas sobretudo de dizer a primeira,[2] tratando-se de reserva absoluta de jurisdição.[3] É o que ocorre quanto à busca e apreensão domiciliar (artigo 5º, XI da CF) e à interceptação telefônica (artigo 5º, XII da CF).

 

Todavia, em outras situações a Lei Maior deixou margem para o legislador, que pode exigir autorização judicial anterior, tal como ocorre na infiltração policial virtual (artigo 290-A, I do ECA) [4], ou outorgar a outra autoridade o poder de decisão, a exemplo destruição de plantações ilícitas de drogas pelo delegado de polícia (artigo 32 da Lei 11.343/06). Com efeito, o panorama constitucional revela que nem sempre se demanda chancela judicial prévia, o que em nada ofende o princípio da separação dos poderes ou tampouco afeta o posterior controle ulterior do Judiciário — que permanece com o monopólio da última palavra, em atuação exclusiva (reserva relativa de jurisdição).

 

No âmbito da persecução penal, o legislador atribuiu ao delegado de polícia a possibilidade de adotar manu propria uma série de medidas, a exemplo da prisão em flagrante (artigo 304 do CPP), a liberdade provisória com fiança (artigo 322 do CPP), a apreensão de bens (artigo 6º, II do CPP), a requisição de perícias, objetos e documentos (artigo 6º, VII do CPP e artigo 2º, §2º da Lei 12.830/13), a requisição de dados cadastrais (artigo 15 da Lei 12.850/13, artigo 17-B da Lei 9.613/98, artigo 10, §3º da Lei 12.965/14 e artigo 13-A do CPP), a requisição de dados telefônicos de localização (ERBs) após decurso de 12 horas sem decisão judicial (artigo 13-B do CPP), a busca pessoal (artigo 240, §2º do CPP), a condução coercitiva (artigo 201, §1º, 218, 260 e 278 do CPP), a ação controlada no crime organizado (artigo 8º, §1º da Lei 12.850/13), terrorismo (artigo 16 da Lei 13.260/16) e tráfico de pessoas (artigo 9º da Lei 13.344/16), o aceite de colaboração de detetive particular (artigo 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17) e o afastamento de servidor público mediante indiciamento por crime de lavagem de capitais (artigo 17-D da Lei 9.613/98). O legislador pode inclusive ampliar esse rol de atribuições, desde que não haja reserva absoluta de jurisdição estampada na Constituição.[5]

 

Destarte, o desenho constitucional adotado indica que nem sempre os atos investigatórios devem possuir chancela prévia do Judiciário. Não se extrai da Constituição ou da legislação infraconstitucional a necessidade de autorização judicial para qualquer requisição ou análise de bens e dados pelo Estado-Investigação, na salutar atividade de construção da verdade.[6]

 

É certo que as informações que evidenciam aspectos personalíssimos dos cidadãos são sigilosas e devem ficar fora do alcance de bisbilhoteiros. Nessa esteira, a Constituição protege a intimidade e a vida privada (artigo 5º, X da CF), que abrangem uma série de dados pessoais (a exemplo dos bancários e fiscais e de internet), e também a comunicação de dados (artigo 5º, XII da CF), seja telefônica, telemática ou por outro meio.

 

No caso das comunicações, a própria Constituição impõe a necessidade de ordem judicial para sua captação, existindo cláusula absoluta de reserva de jurisdição. Já quanto aos dados englobados pela intimidade e privacidade, o texto constitucional foi silente, sendo necessário conferir a legislação infraconstitucional. Em outras palavras, a cláusula absoluta de reserva de jurisdição limita-se à comunicação dos dados (artigo 5º, XII da CF – informações dinâmicas), e não aos dados em si (artigo 5º, X da CF – informações estáticas), que possuem proteção distinta, conforme entendimento dos Tribunais Superiores.[7] A não ser que a lei estabeleça expressamente o contrário, os dados podem ser acessados diretamente pela autoridade investigadora (delegado de polícia) ou acusadora (membro do Ministério Público), independentemente de ordem judicial.

 

Nesse ponto, importante fazer uma distinção básica. O sigilo não se confunde com cláusula de reserva de jurisdição.[8] O fato de o dado ser sigiloso, por dizer respeito à intimidade e vida privada, não significa que necessariamente demande prévia ordem judicial para ser acessado. Diferentemente da comunicação de dados, a Constituição não pediu obrigatoriamente outorga judicial para acesso aos dados em si, não permitindo que a privacidade se equiparasse a uma intangibilidade informacional que inviabilizasse a persecução penal.

 

Ou seja, o legislador ordinário pode perfeitamente admitir o acesso direto, por algumas autoridades (mediante poder requisitório) e no interesse da investigação criminal, a certos dados sigilosos. Esse acesso direto pela autoridade estatal não ocorre por simples curiosidade e não torna o torna público o dado, não lhe retirando o segredo. Em outras palavras, o conhecimento da informação pelo Estado-Investigação não acarreta sua publicização, que continuará longe dos olhos de curiosos. Tais dados não são blindados por um sigilo tão rígido que exija ordem judicial para ser quebrado, e ao mesmo tempo não são completamente desprovidos de segredo (não são públicos) — ficando inacessíveis à população em geral. Longe de configurar mero capricho estatal, traduz o cumprimento do dever de investigação criminal e garantia da segurança pública, sem olvidar dos direitos fundamentais.

 

Logo, o dado pode ser classificado conforme o segredo em: a) público: acessível por qualquer pessoa; b) sigiloso de 1º grau (sigilo normal): franqueado à autoridade administrativa mediante poder de requisição; c) sigiloso de 2º grau (sigilo reforçado): obtido somente através de autorização judicial.

 

Vejamos o tratamento legislativo com relação aos principais tipos de dados.

 

No que tange aos dados cadastrais registrados em bancos de dados (públicos ou privados), trata-se de informações referentes à identidade (nome, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, RG, CPF, filiação e endereço), não revelando aspectos profundos da vida privada ou da intimidade do indivíduo, estando mais distantes desse núcleo de proteção.[9] Os órgãos públicos e privados possuem o dever de fornecerem tais informações à Polícia Judiciária e ao Ministério Público independentemente de ordem judicial (artigo 2º, §2º da Lei 12.830/13, artigo 15 da Lei 12.850/13, artigo 17-B da Lei 9.613/98 e artigo 10, §3º da Lei 12.965/14 e artigo 13-A do CPP).

 

Acerca dos dados financeiros e fiscais, que evidenciam muito sobre a vida particular do indivíduo, leis específicas os resguardaram (artigo 1º da Lei Complementar 105/01 e artigo 198 do CTN), exigindo chancela do Judiciário para seu acesso pela Polícia Judiciária e Ministério Público, mas excepcionando a CPI (artigo 58, §3º da CF e artigo 4º, §1º da LC 105/01) e o Fisco (artigo 5º da LC 105/01 e artigo 198, §1º, II do CTN).[10]

 

Em relação aos dados telefônicos, não depende de prévia autorização judicial o acesso pela autoridade policial à agenda eletrônica e aos registros de ligações (histórico de chamadas).[11] De igual forma, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de dados de localização pretéritos (ERBs às quais o investigado se conectou com o celular).[12] Todos esses dados são estáticos e não revelam o teor de qualquer comunicação. Todavia, para a obtenção de dados de localização em tempo real, o legislador, que poderia ter deixado o acesso na esfera exclusiva do poder requisitório da autoridade de Polícia Judiciária (pois tais informações não revelam o conteúdo da comunicação), exigiu autorização judicial (artigo 13-B do CPP) para investigação do crime de tráfico de pessoas (artigo 149-A do CP), que pode ser dispensada se não houver manifestação judicial no prazo de 12 horas, em verdadeira cláusula de reserva de jurisdição temporária.[13]

 

Quanto aos dados telemáticos (decorrentes do uso combinado da telecomunicação e informática) armazenados nos mais variados suportes físicos (aparelho celular, computador, tablet, pen drive, HD externo, DVD), que em princípio poderiam ser acessados pelas autoridades sem prévia ordem judicial por não existir restrição constitucional, o Marco Civil da Internet estabeleceu cláusula de reserva de jurisdição também para mensagens de correio eletrônico armazenadas (artigo 7º, III da Lei 12.965/14) e registros de conexão e de acesso a aplicações de internet (artigo 10, §1º da Lei 12.965/14). Ou seja, o legislador foi além, e tratou a obtenção de dados telemáticos com maior rigor do que seria preciso segundo a leitura da Constituição, talvez por ter em mente que esses dados contêm em si o próprio teor da comunicação.

 

Pois bem. Questão que deve ser enfrentada é o acesso a dados armazenados em aparelho apreendido pelo delegado de polícia, seja em decorrência de prisão em flagrante ou busca e apreensão domiciliar. É preciso verificar a necessidade ou não de ordem judicial para acesso a dados telefônicos ou telemáticos.

 

No que concerne aos dados telefônicos, seja o equipamento apreendido em busca e apreensão domiciliar (autorizada judicialmente), seja em prisão em flagrante (sem autorização judicial), pode o delegado de polícia extrair os dados por autoridade própria, como visto.

 

Com relação aos dados telemáticos, caso o equipamento seja apreendido em busca e apreensão domiciliar, o próprio mandado judicial já faculta o acesso às informações.[14] Nada impede, claro, que o delegado solicite expressamente em sua representação pela autorização para tanto.

 

A maior polêmica reside na obtenção de dados telemáticos de aparelho apreendido em decorrência de prisão em flagrante.

 

Parte da doutrina entende dispensável a chancela judicial para verificar mensagens guardadas no celular de indivíduo capturado em flagrante, considerando que o policial toma conhecimento da informação não por mero capricho, mas por obrigação constitucional e legal de apurar as infrações penais.[15] Além do mais, a possibilidade de o suspeito apagar os dados remotamente (que não havia excluído de antemão, demonstrando ausência de expectativa de privacidade) reclama rapidez investigativa, incompatível com a exigência de ordem judicial. E o fato de a Polícia Judiciária acessar diretamente o dado não o torna público — permanece sigiloso e longe dos olhos de curiosos.

 

No entanto, para a corrente encampada pela jurisprudência, em regra o delegado de polícia precisa de autorização judicial para acessar dados telemáticos. Além das mensagens de email, dependem de prévia ordem judicial (exigência estabelecida pelo Marco Civil da Internet) as mensagens curtas de texto (SMS) e as mensagens em aplicativos (ex: whatsapp),[16] englobando não apenas escritos, mas também imagens, vídeos, sons ou informações de qualquer natureza.[17] Isso porque o acesso a informações como fotos, vídeos, histórico de sítios eletrônicos acessados e de locais visitados pode revelar muito mais sobre a pessoa do que uma minuciosa busca em sua residência, inserindo-se a discussão no chamado direito probatório de 3ª geração. Apenas excepcionalmente, em situações urgentes nas quais a obtenção de um mandado judicial possa trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito (ex: sequestro), pode a Polícia Judiciária obter diretamente os dados. Obviamente, quando o proprietário autorizar o acesso às informações, pode ser feito pela Polícia Judiciária.[18]

 

Uma coisa é certa: a obtenção de dados pelo delegado de polícia na presidência da investigação criminal, seja por autoridade própria (dados cadastrais ou dados telefônicos), seja mediante chancela judicial (dados financeiros e fiscais, ou dados telemáticos), é medida imprescindível na busca imparcial da verdade.

 

Texto de Autoria do Professor Henrique Hofman

Através do link: https://www.conjur.com.br/2017-jun-13/academia-policia-delegado-policia-acessar-dados-autorizacao-judicial